sábado, 19 de novembro de 2011

O Sobrado

Já era noite quando, pela pequena janela do avião, pude ver as águas escuras do Bósforo. Durante os preparativos para a aterrissagem, uma vertigem me deu a impressão de cair num abismo.  Coloquei os óculos escuros e desembarquei tão lentamente que as pessoas esbarravam em mim na pressa de sair. Fiquei olhando para as malas como se não fossem minhas.

- Sibel é você? Indagou em inglês um segurança lendo o nome na bagagem. Disse que sim e o homem ofereceu ajuda. Recusei, saí arrastando as malas e a mim.
-Taksi! Assustei-me ao me ouvir dizer a primeira palavra em turco. Não esperava retomar minha língua, mas a palavra escapou espontaneamente, como se houvesse outra Sibel dentro de mim, agindo alheia à minha vontade.
-Marmara Hotel, por favor. Fechei os olhos e apenas me deixei ir.  Ao chegar ao quarto, parei atrás da porta por alguns minutos, permaneci em pé ali. Cama grande, uma poltrona e um criado-mudo, como um quarto ocidental e consegui então chegar à janela. Hesitei, mas abri a cortina, deparando-me com uma neblina que cobria poeticamente a noite. A cidade compreendia minha necessidade de vê-la aos poucos...

Todas as noites dos últimos quatro meses retornava à Istambul. Ao fugir para Londres, tentei, compulsivamente, me tornar inglesa. Li até a exaustão toda a história do país, seus hábitos e costumes e reneguei minha história como turca o quanto fosse possível. Isolei as lembranças num compartimento secreto para poder sobreviver, mas sonhos recentes me mostraram que era chegada a hora de voltar. Era sempre o mesmo, eu navegando pelo Bósforo em um barco a remo, sem discernir quem conduzia ou as paisagens em volta, apenas as águas escuras que aumentavam de velocidade e me engoliam. Tentava não dormir para não sonhar, mas era vencida pelo cansaço. E ali estava eu sem saber o que fazer. Lembrei-me do olhar desconfiado do funcionário da alfândega. Ao perceber que era turca, dirigiu-se a mim na língua natal e como não respondi, soltou um welcome pausado.

Sentei-me em frente à janela e a neblina me transportou, aos poucos, para as manhãs de inverno, quando o vapor se erguia das águas do Bósforo aos primeiros raios de sol. Era nesses momentos em que a hüzün*, tão própria dos Istambullus, se apresentava tão densa que eu a sentia como uma roupa se aderindo a mim. Havia uma rara beleza nesses dias, como se a cidade estivesse suspensa nas nuvens e na iminência de ser soprada pelo vento. Imaginava que sairia voando sem destino e desceria do outro lado do mundo e não mais sentiria a hüzün da mesma maneira que em Istambul.
 
Não sou daqui. Nasci no sul, em Mersin. Papai mudou-se para Istambul quando mamãe morreu. Ele se enterrou no trabalho. Saía muito cedo e só voltava tarde da noite, quando eu já dormia. Nos raros momentos de folga, punha-me em seu colo, quieto, olhando-me por um longo tempo. Dizia que eu tinha o mesmo rosto bonito e o sorriso de mamãe e grossas lágrimas caíam de seus olhos tristes. Entregou-me aos cuidados de Harika.
Ela teve um passado peculiar. Tinha pai inglês e mãe turca e a família se mudou para Londres quando ela ainda era bebê. Lá estudou História e Inglês e, após o divórcio dos pais, voltou com a mãe para Istambul e passou a lecionar.  Ao se aposentar, foi indicada ao meu pai para cuidar de mim. Estava sempre alegre, contrastando com os melancólicos Istambulus.

Aprendi o inglês, o turco e a história de Istambul muito antes de entrar na escola. Como papai nunca estava em casa, levava-me por longos passeios pela cidade. Sua visão de Istambul ainda era a da cidade colorida e gloriosa do passado. Eu via a cidade envolta em neblina, em preto e branco e não entendia seu olhar otimista. Constantemente, pedia para navegar pelo Bósforo. Era em suas águas escuras, profundas e misteriosas que eu conseguia olhar para a cidade e ver, no reflexo das mesquitas, igrejas, palácios, toda a glória e beleza que Harika enxergava. As águas davam uma luz própria à cidade e era essa imagem da cidade refletida no Bósforo que eu amava.     
Num dia em que papai saiu atrasado, eu o ouvi ordenar a Harika que me mantivesse sempre longe dos curdos. Perguntei-lhe quem eram esses curdos e ela relatou a triste história de mamãe. Não me lembrava dela. Tinha dois anos quando morreu e papai nunca havia me dito nada, a não ser sobre nossa semelhança. Como sempre chorava nesses momentos, evitava fazer-lhe perguntas. Papai era neurocirurgião e trabalhava no maior hospital da cidade. Conhecera mamãe quando sua família sofreu um acidente de carro e só ela sobreviveu. Coube a papai lhe dar a notícia. Ao entrar na enfermaria, viu-se diante de uma linda jovem de cabelos longos e escuros, olhos grandes e expressivos. Antes de lhe contar sobre a perda de seus pais, fez uma graça e percebeu que, ao sorrir, uma covinha aparecia em ambos os lados de seu rosto.  Ele, inexplicavelmente, se apaixonou por aquele sorriso. Durante dois meses, cuidou pessoalmente de sua dolorosa reabilitação. Ao lhe dar alta, ele a pediu em casamento. Vim ao mundo nove meses após se casarem. Viviam muito felizes, mas mamãe nascera sob o signo da fatalidade. Um dia, ao voltar para casa com as compras, foi atropelada por um motorista curdo embriagado. Não houve como socorrê-la. Era sua sina ser ceifada por um carro. Papai quase sucumbiu à dor, passou meses em depressão, por mim, foi obrigado a retornar ao mundo. Tomou-se de um intenso ódio aos curdos. Aos seus olhos, todos eles eram culpados pela ação de um homem bêbado.


Quando fiz quatorze anos, Harika retornou a Londres para cuidar do pai. Então conheci Gertrude, uma alemã que me vigiou com mão de ferro. Tornei-me triste e solitária, com horários rígidos e sem liberdade. Tinha que me contentar em observar a cidade da janela da sala, no quinto andar de um prédio com vista para o Bósforo. Demorava a dormir, ouvindo o apito dos navios que chegavam e partiam e lembrava-me com saudades da ponte Gálata, onde passei muito tempo vendo os navios que aportavam. Nessa época, resolvi me graduar em Londres e intensifiquei meus estudos.

Gertrude voltou repentinamente para a Alemanha e consegui convencer papai que já era bem crescida e responsável e não precisava mais de babá. Ele concordou e me fez prometer que não falaria com estranhos. Pude voltar a andar pela cidade após três anos de severa vigilância. Um tarde entrei em uma pequena rua, num bairro pobre, nas cercanias do porto, e encontrei um antigo sobrado de madeira, com a tinta há muito desbotada. Lembrei-me das histórias de Harika sobre os príncipes otomanos e suas mansões de madeira e de como ficaram abandonadas após a queda dos paxás.  Havia algumas crianças por perto e perguntei se alguém morava ali. Elas me disseram que a casa era assombrada pelos fantasmas dos antigos moradores e ninguém entrava lá há muito tempo.

Não consegui esquecer o sobrado e voltei no dia seguinte. Não havia ninguém na rua, parei na entrada e ouvi música. Porta encostada, resolvi entrar. Subi lentamente as escadas. Ao contrário de sua fachada, as paredes eram pintadas e limpas. Achei que os fantasmas dali gostavam de casas antigas, mas bonitas. O som de uma música com versos tristes aumentou. A sala era grande, com móveis escuros, tão antigos quanto a casa e bem conservados. No chão, muitas bolas de lã coloridas, achei-as fascinantes. Com cautela, avancei, silenciosamente. Parecia que havia entrado numa casa de sonho, tamanho o contraste com o exterior. Senti perfume de flores, estavam na mesa da cozinha, eram de todas as cores, inimagináveis. Estavam frescas ainda, lembrei da história das crianças e ri da tentativa de me enganarem. Quem trouxera as flores não podia ser fantasma. Segui a música.

Vinha de um quarto amplo. Sentado no chão, um jovem, de costas para mim, tecia habilmente um lindo tapete. Não sei dizer quanto tempo eu o observei na magia de entrelaçar e cortar a lã, criando desenhos com uma rapidez desconcertante. Absorta nas tramas do tapete, não percebi que ele havia se virado e me olhava, sorrindo, com olhos mais brilhantes que as estrelas. “-Como se chama?”, perguntou. Gaguejei, ele estendeu a mão: ”-Meu nome é Havin.” Perguntei-lhe sobre as flores. ”-Uso para tingir a lã.” Em silêncio, levou-me pela mão até a cozinha, ferveu água, jogou as flores e tingimos lãs a tarde inteira. Neste tempo, não trocamos uma única palavra. Eu não suportava os rapazes da escola em suas tentativas de me conquistar relatando proezas que eu sabia serem falsas. Havin, ao contrário, me mostrou a maneira sublime com que criava a partir da riqueza que a natureza lhe ofertava. Não senti as horas passando e saí sem nada dizer.

Naquela noite, sonhei que corria por um imenso jardim colorido. Quando acordei, decidi voltar ao sobrado. Disse à empregada que iria dar aulas particulares de inglês a um grupo de amigas com notas baixas. Ao chegar, como na véspera, encontrei a porta destrancada. Entrei e percebi que era esperada. Sentei-me ao seu lado e tive a impressão de que havia nascido para fazer tapetes. O som da tesoura era tão mágico, uma música sobrenatural. Ele me dava as lãs de diversas cores e me mostrava onde amarrar, em completo silêncio. Extasiava-me com a beleza dos desenhos, eu tecia sonhos, os sonhos de Havin!  No tapete, uma águia imponente sobrevoava um imenso abismo. No fundo, um rio de águas rápidas. A águia olhava fixamente para o sol, que estava dentro de um triângulo equilátero.

As visitas se tornaram frequentes, eu chegava em silêncio e assim partia, levando comigo o perfume das flores e da casa antiga, o desenho da vida retratada em lã. Após um mês, ao sair, disse-lhe: “-Meu nome é Sibel”.

Já sabia que havia me apaixonado, pela primeira vez. Gostava demais de estudar para perder tempo com encontros sem futuro, mas Havin era muito especial.

Ao chegar, no dia seguinte, havia no chão da sala um tapete novo. Era amarelo e, no centro, um grande losango vermelho. Ele me esperava, sentado em uma cadeira. Levantou-se, pediu que dançássemos, nem ouvi se havia alguma música. Rodamos até eu não saber mais onde estava e não estranhei quando enfim nos beijamos. Sobre o tapete, deixamos nossos corpos tecerem seus desejos...

Uma semana depois, inesperadamente, me contou que seus pais eram iranianos e que, numa visita a um tio de sua mãe, morreram num confronto entre sunitas e xiitas. Ele, ainda pequeno, voltara para Istambul com o tio, que o ensinou a fazer tapetes, uma profissão passada de pai para filho há gerações. Mudaram-se para o sobrado, próximo ao porto, para venderem os tapetes para os mercadores estrangeiros que vinham nos navios. Disse que era curdo. Meu coração gelou, mas estava apaixonada demais para levar papai a sério. Achava que ele não tinha tempo de me vigiar, trabalhando tantas horas por dia. Eu só queria estar com Havin e nada mais. Nesse dia, o desenho do tapete mostrava um homem de costas, descalço e os sapatos ao seu lado esquerdo.

Ouço um apito de navio. Já amanheceu e a neblina se dissipou. Olho para a cidade acordando, cheia de vida, a me chamar. Após um banho demorado, saio para o inevitável. Entro no Çiçek Bufe para tomar o café da manhã. Várias pessoas apressadas saindo para o trabalho enchem o lugar. Ouço suas vozes e deixo suas falas acordarem o turco dentro de mim.

Caminho sem destino. Maçka, Praça Taksin, Tünel, a ponte Gálata. Recordo-me de Harika entusiasmada me mostrando a cidade apaixonadamente, de um jeito só seu. Sempre tinha uma história dos personagens de cada rua, cada praça, museu.

No cais, resolvo pegar uma barca. Contemplo o Chifre de Ouro e recordo das tantas vezes em que fiz essa viagem na infância, o som do motor agora mais silencioso, mas a cidade não mudara muito. Ela se descortina aos meus olhos que agora eu descubro saudosos. Rever a ponte se afastando, Hasköy, Fener, o palácio Topkapi, a mesquita Süleymaniye, as ruínas às margens me lembrando toda a glória perdida, devolve minha identidade turca, sufocada por tantos anos. Desço em Eyüp e caminho imersa em lembranças.  Retorno para a cidade e vou para a Hagia Sophia. Respiro fundo, perguntando-me como pude viver tanto tempo longe, meus olhos querendo captar todas as imagens tão rapidamente que sou forçada a me sentar para não cair. Tudo o que tive na infância fora a descoberta de Istambul, o amor pela cidade. Eu me alimentei tão profundamente de seu milenar e glorioso passado, de cada recanto, igrejas, mesquitas, tantas vezes chorei por seu empobrecimento e agora descubro que meu esforço em ser inglesa fora inútil.

Fecho os olhos e penso em papai e na dor que a perda de mamãe lhe deixou para sempre. Choro por ele e por mim, condenados que fomos a só amar uma vez.    

...Era um dia de sol, o primeiro após um longo inverno. Fui para o sobrado direto da escola. Estranhei não ouvir a música habitual. Um cheiro diferente na casa, enjoativo e sinistro. O medo me refreou, mas adentrei o quarto. Caído, Havin tingia as lãs de um vermelho cor de morte. Além, sobre o tapete do homem descalço que terminamos na véspera, papai, cabeça ensanguentada, ainda o revolver na mão. Não sei por quanto tempo gritei, lembro-me apenas de ser arrastada já sem voz pela escada...

*Hüzün: palavra turca para melancolia.

Elisabete

Link para a imagem aqui.